REANP de Língua Portuguesa // Professora: Joissy Borges // Data: 11/02/2021
Escola
Municipal Justiniano José Machado.
Data: 11/02/2021
Disciplina: Língua Portuguesa
Professora: Joissy Borges da Silva
Conteúdo: Leitura e interpretação de texto.
v Leia
com atenção o texto abaixo.
Chuva: a abensonhada
Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade
me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a
mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar,
a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da
terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda
podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?
Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai
ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à
janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha
Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de
clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez
é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível
e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha
teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão
descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.
Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem
dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos
antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas
podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os
mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas.
Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de-usar e profere suas
certezas:
– Nossa
terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que
lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este seu
fato?
– Mas,
Tia Tristereza: não está chover de mais?
De mais?
Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me
explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma
gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para
Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os
dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que
regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das
sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.
Mas dentro
de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será
prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade de estio se seguirá a
punição das cheias?
Tristereza
olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que
minha sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela
costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e
outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa:
– Lá
em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a
água.
E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades.
– Não acredita, senhor? Mesmo em minha casa já caíram.
– Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?
Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas
palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus
olhos pela janela. Lá fora continua chovendo. O céu devolve o mar que nele se
havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu
entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a
interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? A voz de
Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o
senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E
acrescenta:
– A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora,
era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de
Moçambique ...
Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco.
A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a
rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros. Por que motivo eu
tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda
ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta,
como eu, a atracção de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa
terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A
janela: não é onde a casa sonha ser mundo?
A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com
lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como
as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua de todas as cores. A Tia já
dobrou as despedidas e está a sair quando eu a chamo:
– Tristereza, tira o meu casaco.
Ela se
ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns
restantes pingos vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não
sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saímos os dois pisando
charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito
brinquedo.
(COUTO, Mia. Estórias
abensonhadas. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 57-62)
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e responda as atividades abaixo.
1) Descreva as personagens do
conto e o assunto principal sobre o qual conversam.
2) Em que lugar ocorre o diálogo entre essas personagens?
3) Elas têm a mesma opinião sobre o assunto principal que está sendo tratado?
4) Assinale a alternativa que melhor exprime a opinião da
personagem Tristereza sobre a chuva.
a) A chuva era um castigo dos deuses, assim como o período de estio que o povo
havia enfrentado.
b) A chuva serviria para limpar o povo de qualquer pecado e excesso que
houvesse cometido durante o período de guerra.
c) A chuva estava lavando a terra do triste passado de guerra.
5) A alegria que as personagens experimentam se refere
somente a chuva que cai após o período da seca?
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